domingo, 19 de outubro de 2014

A DESCONHECIDA.

dia desses, eu estava sentado em um beco esperando minha vez de cortar o cabelo. na verdade, não tinha muito segredo, era só atravessar uma máquina quatro pela minha cabeça, vai e volta, vai e volta, e pronto. vou dificultar essa merda, pra que? pra parecer descolado? então, sentou do meu lado uma senhora. ela comia um milho com dificuldade, pois não tinha muitos dentes para ajuda-la na empreitada. como quem não quer nada, ela se virou pra mim e perguntou se eu queria. acho que foi a primeira vez que um estranho me ofereceu alguma coisa, sem que eu precisasse meter as mãos no bolso. recusei o milho, mas permaneci olhando para ela, de alguma forma eu sabia que ela queria dizer mais alguma coisa. e disse. contou que alguém tinha arranjado um lugar para ela morar, já que a própria filha a despejou de casa. segundo ela, a namorada da filha dela foi quem deu a ideia. continuou, dizendo que era maltratada, e realmente, a senhora tinha os olhos tristes. as mãos calejadas. a voz fraca. os cabelos um pouco desgrenhados, como se nada mais importasse. fiquei imaginando que essa era o retrato fiel de alguém que não é amado por ninguém, nem pela própria família. ainda que ela tivesse algum amante, não sei. fiquei imaginando em quantos lugares aquela mulher sentou, mas não recebeu atenção de ninguém a ponto de se sentir a vontade para conversar um pouco. ela só queria que alguém a olhasse nos olhos e a escutasse. poucas pessoas fazem isso hoje em dia. falo por mim, e agora falo por ela também. foi quase uma hora de conversa. de fraturas sendo, finalmente, expostas. mesmo que a um estranho. que, felizmente, não foi posto para fora de casa, mas que também carregava suas próprias dores. não me senti a vontade para contar dos meus problemas, depois de tanta coisa que a senhora havia dito. tenho a mania de guardar pra mim, coisas que não podem ser solucionadas por ninguém. tenho a mania de esconder as rachaduras com folhas de papel. tenho a mania, quase automática, de dizer que está tudo perfeitamente bem, quando por dentro, o castelo de cartas vai desmoronando vagarosamente. depois que a senhora saiu, com metade do seu milho ainda a ser comido, eu também quis sentar do lado de alguém e receber a atenção que eu havia acabado de dar. quer saber? deixa pra lá.

Um comentário:

  1. Qué fermoso. Lémbrame a "La tristeza", de Chéjov (desculpa que o dixese en castelán, non sei como será o título en galego, que é o idioma máis parecido ó portugués que sei falar).

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